Um artista capaz de conceituar uma de suas obras mais significativas como “antiarte por excelência” nos revela muito de sua personalidade e intenção artística. Hélio Oiticica assim o fez com sua obra Parangolé criada a partir de 1964. Sempre polêmico, anarquista e vanguardista por natureza, Oiticica fez um movimento de desintelectualização e dessacralização da arte; de desconstrução e reinvenção de conceitos. Não foi um artista “além de seu tempo” e sim um artista que interagiu, interpretou, revelou, influenciou ativamente a sua época e a nossa.
Oiticica foi um dos mais importantes representantes do Neoconcretismo Brasileiro, movimento de vanguarda que se opunha ao cientificismo e ao materialismo concretista que o precedeu. Os signatários do Manifesto Neoconcretista de 1959 defendiam que a arte precisa de emoção, expressividade, subjetividade e experimentação. Oiticica praticou esses fundamentos de forma radical em seus trabalhos.
A maior parte de sua produção artística foi desenvolvida ao longo da Ditadura Militar. Oiticica nasceu em 1937 no Rio de Janeiro e nos deixou precocemente em 1980, vítima de um AVC. Suas primeiras obras datam de meados da década de 50 com trabalhos que já propunham uma nova linguagem geométrica, não figurativa e em novos suportes. Rapidamente abandonou a tela e a parede para ocupar espaços tridimensionais e externos. Relevos espaciais, cabines coloridas, Bólides, Labirintos foram alguns de seus importantes trabalhos. Todos partindo da experimentação e da busca de uma atitude participativa e não apenas contemplativa do espectador.
Aliás, essa reinvenção da condição do espectador foi uma das maiores contribuições de Hélio Oiticica à Arte Contemporânea. E não foi por acaso que essa intencionalidade artística foi radicalizada durante a Ditadura Militar. O artista passou a frequentar o morro da Mangueira, aproximando-se da população da favela carioca e de sua cultura, sobretudo do samba. Vivenciou a cultura popular e dessacralizou a Arte elitista dos museus. Deu voz à população marginalizada em um momento em que a censura dava o tom. Essa experiência foi marcante na vida e obra de Oiticica, inspirando a criação do Parangolé.
Os Parangolés são vestes ou capas feitas de variados materiais e cores que se revelam apenas quando são vestidos e movimentados pelo espectador, preferencialmente através da dança. Na primeira exibição do Parangolé, Oiticica já mostrou a que veio. Em agosto de 1965, apresentou ao público sua obra na abertura da exposição “Opinião 65” no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, com a participação da comunidade da Mangueira. Podemos imaginar o impacto provocado pela entrada das passistas mangueirenses no elitista museu carioca, vestindo os Parangolés, batucando e dançando. Oiticica era um intelectual e um exímio dançarino. Leitor voraz de Nietsche, como esse filósofo, defendia que só poderia crer em um Deus que soubesse dançar.
As autoridades do museu os obrigaram a se retirar do salão, mas Oiticica e seus convidados/co-artistas apresentaram a obra na área externa dos jardins. De uma forma ainda mais estrondosa, o Parangolé entrou para a História como um ato de democratização e dessacralização da arte, de aproximação da Arte Erudita com a Arte Popular e de visibilidade da participação ativa da população mais pobre em um momento de silenciamento forçado da sociedade pela Ditadura Militar.
O Parangolé foi uma obra emblemática desse período político brasileiro, pois, em um momento de repressão, demandava a participação e a livre expressão como condição para que a própria obra pudesse existir e ser vista. Além dessa mensagem implícita, muitos Parangolés apresentavam mensagens abertas com frases como “Capa da Liberdade”, “Da adversidade vivemos” ou “Incorporo a revolta” escritas no próprio tecido.
Oiticica desafiou a disciplinarização forçada, autoritarismo e repressão da Ditadura Militar, os valores intelectualizados elitistas dos museus e do mercado das Artes e, em especial, os fundamentos artísticos hegemônicos da época. Gerou uma nova concepção da obra de arte na qual ela não deveria ser apenas vista, mas acima de tudo sentida e experimentada. O espectador não é mais um contemplador, mas um co-autor da obra, pois essa só existe com a sua participação ativa. Os suportes possíveis da obra de arte também são ampliados, chegando ao próprio corpo humano. Na verdade, no Parangolé o corpo é, além de suporte, parte da própria obra.
Hélio Oiticica leva à risca o pensamento do escultor mineiro Amílcar de Castro que afirmava que a Arte pode ser mil coisas. Demonstrou isso na sua prática artística. O Parangolé dialoga com a música, com a dança e até com a arquitetura da favela. A obra é apresentada associada aos movimentos e ritmos do samba, dialogando de forma direta com essas expressões artísticas. O próprio nome da obra remete a outra linguagem, a arquitetura. Parangolé foi uma palavra que inspirou o artista quando a viu identificando uma barraca improvisada de um mendigo. A obra Parangolé, assim como a arquitetura das favelas, é feita de materiais diversos e reaproveitados, é resultado de improviso e adaptações.
Um artista da genialidade de Hélio Oiticica reverbera além do seu grupo, do seu tempo e do seu país. Na mesma época em que os Parangolés de Oiticica eram produzidos, no submundo dos hospitais psiquiátricos Arthur Bispo do Rosário criava o seu Manto. Um cobertor velho que se transmutou em um traje majestoso e em uma respeitada obra de arte após ser inteiramente bordado pelos símbolos, números e frases de Bispo. A intencionalidade dos artistas era bem diversa, pois Bispo do Rosário o construiu a partir de um elemento sagrado, para vesti-lo durante a sua passagem no dia do Juízo Final. Mas os dois artistas tinham elementos em comum: o vestir a obra de arte tendo o corpo como suporte, a profusão de materialidades tidas até então como não dignas da arte, o objeto sensorial e em diálogo com outras linguagens artísticas.
Vemos interações do Parangolé até mesmo com as novas tendências da moda internacional contemporânea. Em 2017, a coleção da Louis Vuitton foi reconhecidamente inspirada na obra do brasileiro Hélio Oiticica. Artistas renomados vestem parangolés modernos e campanhas publicitárias utilizam a sua linguagem visual. As obras de Oiticica permanecem sendo criadas e recriadas e mexendo com nossas emoções.
A explicação para isso é que vemos em Hélio Oiticica a convergência de várias linguagens artísticas, culminando em obras que dialogam com os fundamentos estéticos da Arte Contemporânea Mundial. No entanto, tais fundamentos são transmutados para a realidade brasileira, para o que nos identifica como povo e para nossas origens mais profundas. Traz o caráter congenial dos artistas brasileiros, mostrando ao mundo e ao Brasil, a nossa verdadeira face.
ARTIGO DE ANA PAULA MARCHESOTTI ORIGINALMENTE PUBLICADO NA REVISTA MEER.COM DE 29 DE JULHO DE 2023
https://www.meer.com/pt/74125-helio-oiticica